É muito comum ver, nos clubes, nos bairros e nas escolas grupos de
pessoas em que aparecem três classes: os famosos, os neutros e os
mal-afamados. Para ser famoso, basta uma boa qualidade: habilidade nos
esportes, riqueza, beleza, inteligência (desde que não se seja um nerd),
uma boa compleição física, força ou, então, bons relacionamentos
("filho de", "amigo de", "protegido de" e até "namorando tal pessoa").
Do outro lado, os exageradamente feios, pobres, limitados
intelectualmente, mal relacionados (o mesmo "amigo de", "filho de" etc.,
mas em outro contexto), ou, às vezes, basta o azar de um ou outro
acontecimento ruim e rumoroso (como uma surra, um vexame ou coisa que o
valha). Ser "chato" também é motivo para estar sob a mira de qualquer
grupo.
Para ser chato, é preciso algum bom motivo: pessoas muito estudiosas e
sem simpatia são hipótese corrente; monotemáticos, idem. Por fim, vale
lembrar que um dos melhores conceitos do que seja um "chato": chato é
aquela pessoa que tem mais interesse em você, do que você nele.
Um fato positivo, também, pode guindar alguém ao estrelato, mas, para
as coisas boas, a memória humana é muito falha, de modo que, depois de
algum tempo, será preciso "atualizar" algum motivo para estar no hall da
fama.
Aqueles que não têm a sorte de estar no primeiro grupo nem o azar de
estar no último são os neutros, aqueles que têm a vida mais tranqüila,
livres das responsabilidades dos eleitos pela fama e das discriminações e
perseguições aos mal-afamados.
É claro que as tais classes não são estanques, permitindo
movimentação, conforme a vida vai andando. Pois bem, os representantes
dos grupos da extremidade andam mais ou menos juntos: os famosos, por
uma questão de elitização, e os mal-afamados, por falta de opção. Claro
que todos possuem seus grupos menores, de pessoas com as quais há maior
amizade e, necessariamente, mais compreensão e solidariedade mútuas.
No grupo dos mal-afamados, há sempre um núcleo de resistência às
gozações dos famosos, quando, entre eles, aparece um ou outro infeliz
que, não satisfeito por estar "bem", ainda faz questão de marcar sua
suposta "superioridade". E, como se tem que imitar os famosos, o grupo
dos mal-afamados costuma unir-se para uma certa proteção mútua.
Os filmes americanos sobre adolescentes, colégios etc. mostram
razoavelmente estas divisões, embora as colocando de forma um pouco
estereotipada, além de trazerem tais filmes seqüelas do american way of life, que é um modelo consideravelmente frívolo, conforme se vê, por exemplo, através das noções de winners e loosers; como se vencedores e perdedores fossem pessoas, e não situações.
A aprovação em concurso é interessante, pois coloca a pessoa no grupo
dos bem resolvidos, dos que tiveram sucesso, dos que têm algum poder
(maior ou menor, de acordo com o cargo, mas sempre considerável). Além
disso, a aprovação também guinda o candidato ao estrelato. Num momento,
ele é um "cara" desempregado, que estuda, estuda, estuda e só "leva
bomba"; de repente, transforma-se num vencedor, num winner. É
óbvio que, se eu for ter um conceito de vencedor, o sucesso profissional
será apenas um dos aspectos considerados, mas que a aprovação é um
grande feito, disto ninguém duvida.
Uma das lembranças de minha infância refere-se ao Guto. Ele era um
"cara" que, quando eu tinha lá uns oito anos, deveria ter uns quinze ou
dezesseis e estava na lista dos "caras" respeitados. Tinha namorada,
jogava bem futebol e o pessoal da vizinhança tinha-o como um daqueles
cuja opinião tinha que ser considerada, ouvida. Eu, para variar, não
jogava nada direito, estava na lista dos mais crianças, era muito branco
(qualquer diferença é motivo de chacota) e, obviamente, estava "mal
parado". Por esse motivo, era um daqueles que, de vez em quando, sofria
alguma gozação, vitupério ou ameaça dos "caras" maiores e daqueles que,
estando na lista dos respeitados, gostavam de criar-se em cima dos
menores e mais fracos.
Contudo, sempre que alguém queria fazer alguma maldade, daquelas
pequenas maldades (ou, às vezes, grandes) que são feitas no dia-a-dia,
Guto intervinha, impedindo-a. O fato de estar na lista dos detentores de
força e fama era, para tanto, indispensável. Certas vezes, vi-o
proteger outros "normais" ou mal-afamados; outras tantas, eu mesmo
deixei de ser ridicularizado ou receber um tapa ou cascudo, em razão da
generosa e gratuita intervenção do Guto.
Eu admirava sua atitude. Além do mais, proteger ou tomar partido de
algum mal-afamado ou fraco chegava a ser, em geral, atitude quase
reprovável entre os bem-afamados, que poderia custar sua exclusão da
lista dos "bam-bam-bans", vez que ainda existe, em algum lugar no
imaginário social, a infeliz idéia de que os grandes não podem ou não
devem preocupar-se com os menores.
É gozado, mas eu já encontrei o Guto umas duas vezes e acabei ficando
fisicamente bem maior do que ele. É gozado, pois, quando o cumprimento,
continuo a perceber-me menor do que ele, e permaneço agradecido.
O fato é que Guto influenciou-me bastante por sua atitude. Eu,
pequeno que era, via como era necessário ser forte para estar protegido.
Mais do que isto, eu admirava seu jeito de proteger os outros e sentia
vontade de, um dia, ser forte e imitá-lo, proteger os mais fracos
gratuitamente. Eu admirava o que ele fazia e, no fundo, sonhava em, um
dia, ser forte e defender os outros.
Escrevo isto porque já passamos da época em que a força física era a
melhor forma de resolver as disputas. Atualmente, prevalece a força da
caneta, do conhecimento, da competência.
Eu gosto muito de ser juiz, vez que, ao realizar as atividades
típicas do cargo, acabo podendo seguir o bom exemplo do Guto: defender o
mais fraco ou o que tem razão. Há horas em que o governo é a vítima;
noutras (mais freqüentes), o cidadão. Seja como for, o cargo permite-me
fazer o bem e, ainda, pagam-me por isto! Podem até não ser os
vencimentos de que eu gostaria, mas é um bom valor, diante das condições
do país.
Não é apenas na magistratura que há esse privilégio de servir, e não
haverá um Brasil melhor sem policiais, fiscais, auditores, promotores,
defensores, servidores de todos os Poderes e níveis que estejam imbuídos
de bem cumprir sua parte.
Cada um que me lê, agora, e que está estudando para um concurso,
representa uma esperança de dias melhores. Você não é apenas a esperança
de dias melhores para si mesmo, com a aprovação, mas também a de que o
serviço público consiga lograr êxito em atender aos anseios da população
por justiça social e progresso.
Precisamos buscar motivação, seja ela em Deus, na família, nos
filhos, nos sonhos de um mundo melhor, no desejo de segurança e emprego
ou, até, de seguir algum exemplo marcante. Seja como for, importa que
haja esforço e persistência necessários ao sucesso nas provas. E que à
nomeação, à posse e ao exercício sigam-se as atividades naturais do
ofício, desempenhadas com a certeza de que nossa atuação influencia os
destinos da nação. John Kennedy foi muito feliz ao dizer que poucos
mudam o curso da história sozinhos: a história da Humanidade é feita de
pequenos gestos de coragem e de crença.
O fato é que cada um de nós tem uma pequena, mas essencial parcela no
destino deste planeta e, através do concurso público, não só resolvemos
nosso problema pessoal relativo à vida profissional, mas também
habilitamo-nos a influenciar positiva e eficazmente os destinos do país.
William Douglas